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O lado ruim de trabalhar com o que se gosta

Josh Christie construiu sua carreira em torno de coisas que ama.

 

Josh Christie escreveu seu primeiro livro sobre cerveja enquanto trabalhava em tempo integral numa livraria independente.

“O livro foi todo escrito entre 5h e 8 da manhã. Eu levantava e começava a trabalhar nele e depois saía para o trabalho e trabalhava o dia todo”, diz Christie, de Portland, no Estado americano de Maine.

Equilibrar uma jornada completa era um desafio, mas desligar completamente depois do trabalho também.

“À noite, a parte mais difícil era ir a um bar, tomar uma cerveja e pensar, ‘Eu vou escrever sobre isto? Ou esta é apenas uma cerveja que eu estou apreciando?”.

Livros e leituras são uma paixão, e quando ele começou a trabalhar numa livraria independente quando estava na faculdade, ele descobriu que também adorava conversar sobre livros com outras pessoas.

Hoje ele é dono de sua própria livraria, numa sociedade, e também escreve sobre livros, cerveja e esqui para jornais e revistas.

Seus interesses e vida profissional tornaram-se completamente interconectados.

“É difícil imaginar como eu poderia afastar minha atividade como escritor da cerveja ou do esqui ou afastar meu cérebro de dono de livraria do meu prazer de ler livros ou falar sobre livros.”

A ideia de fazer profissionalmente o que você ama sempre foi sedutora.

Como diz o provérbio às vezes atribuído a Confúcio: “Escolha um trabalho que você ama e não terá que trabalhar um único dia em sua vida”.

Talvez esse sentimento nunca tenha sido tão pertinente, pois, desde que a pandemia de covid-19 começou, mais e mais pessoas têm reconsiderado suas vidas profissionais.

Novos estudos mostram que, cada vez mais, nós queremos nos importar – e mesmo amar – nossas profissões.

Nesse contexto, transformar um hobby ou interesse numa carreira pode ser a escolha óbvia.

Mas será que existe um lado ruim de combinar nossas paixões com nossas vidas profissionais?

Será que a realidade significa transformar um hobby que nós amamos numa obrigação de preencher uma planilha?

E como você se desliga de seu trabalho quando os limites entre trabalho e lazer não estão claras?

Há também questões de finanças a ser consideradas, caso sua paixão não permita que você ganhe dinheiro suficiente para você ter o estilo de vida que deseja.

Então, será que ganhar a vida com aquilo que você ama realmente é tudo aquilo que dizem ser?’

Feliz no emprego, feliz na vida?

Há muitas evidências que sugerem que as pessoas querem encontrar um trabalho que lhes agrade mais.

Uma pesquisa da McKinsey, feita em 2021, mostrou que dois terços de todos os trabalhadores baseados nos Estados Unidos disseram que a crise causada pela covid fez com que reavaliassem seus propósitos na vida, e 50% diziam estar reconsiderando o tipo de trabalho que faziam como resultado dessa nova realidade.

Para alguns, desenvolver e monetizar seus interesses pessoais é uma possível saída.

Numa outra pesquisa, envolvendo 2 mil americanos, 60% disseram que haviam aprimorado suas habilidades em um ou mais de seus hobbies desde o início da pandemia no país, em março de 2020, e 40% pensavam que era “muito” ou “extremamente” provável que eles conseguissem ganhar dinheiro com seu hobby após o fim da crise na saúde.

Transformar um interesse pessoal prazeroso em algo lucrativo pode parecer uma maneira direta de melhorar o bem-estar.

Monetizar suas atividades favoritas pode parecer uma situação em que todo mundo sai ganhando, mas os especialistas alertam que pode haver desafios inesperados

Dedicar nosso tempo a atividades que nos trazem alegria nos enriquece, explica o psicólogo clínico Yesel Yoon, baseado em Nova York.

“Se você permitir que aquela parte de você mesmo seja ativa, isso ajuda no longo prazo a desenvolver um senso maior de bem-estar psicológico e felicidade.”

Um motivo pelo qual nós sonhamos em tornar algo prazeroso como um hobby num trabalho, explica Yoon, é a possibilidade de “reverter a equação”.

Por exemplo, alguém que não gosta de seu trabalho, mas deseja aumentar seu sentimento de felicidade, pode achar que trocar o emprego por uma atividade mais prazerosa pode resolver.

Trabalhar com algo em que estamos interessados também pode trazer um sentimento profundo de propósito. Rikke Hansen, consultora de mudanças de carreira e apresentadora de podcast baseada em Londres, que frequentemente ajuda pessoas a se movimentar na direção de novos projetos em campos pelos quais elas são apaixonadas, diz que quem faz essa mudança com sucesso colhe benefícios reais.

“Você obtém autonomia, você obtém controle, e você obtém propósito. E essa é a forma mais motivacional de trabalhar”, diz ela.

Também existe a ideia geralmente aceita de que viver de algo que você ama é uma coisa que todo mundo deseja.

Yoon, porém, alerta contra abraçarmos demais a ideia de que “se você está fazendo um trabalho tolo, você é um vendido, mas, se você estiver fazendo aquilo pelo qual você é realmente apaixonado, aí você está vivendo de verdade”.

Christie, porém, admite que existe um status social em ser conhecido como “o cara que é dono da livraria”.

O reconhecimento externo de seu sucesso também pode ser gratificante num nível mais profundo. Ser reconhecido pelo seu trabalho por colegas de seu setor é recompensador e, diz Christie, “você não recebe necessariamente esse reconhecimento na sua vida apenas fazendo as coisas de que você gosta”.

Limites necessários

A realidade de fazer de sua paixão uma carreira também traz complicações.

Primeiro, perseguir hobbies ou interesses por prazer pode ficar diferente quando eles caem na categoria “trabalho”.

Para Christie, abrir uma livraria inevitavelmente significou que ele tinha que equilibrar atividades de que ele gosta, como escolher as obras para o estoque da loja, com tarefas de empresário, como negociar o aluguel do ponto.

Também tem sido um trabalho pesado para ele. Mesmo com uma outra pessoa na sociedade, ele trabalha em turnos na loja e depois do expediente ainda tem que lidar com muita comunicação profissional (textos, e-mails, ligações telefônicas).

E, enquanto o trabalho pode ser gratificante, o dinheiro que ele ganha não é lá essas coisas.

“Eu tenho essa carreira porque eu sou apaixonado por isso, mais do que pelas razões financeiras. Eu adoro livrarias independentes, mas não é a carreira mais bem remunerada do mundo”, afirma Christie.

Na tentativa de completar sua renda, ele percebeu que os textos que escrevia sobre cerveja e esqui eram uma coisa pela qual ele podia ser pago, monetizando um outro prazer pessoal.

O sentido de identidade de Christie é profundamente conectado com seu trabalho, o que é comum para pessoas em sua posição.

Transformar um hobby em uma renda pode ser complicado, com limites confusos entre a vida profissional e pessoal

Hansen diz que, no caso de clientes que mudam para atividades baseadas em suas paixões, o trabalho geralmente torna-se central para sua identidade.

Mas isso significa que, enquanto o sucesso pode ser potencializado, o mesmo pode ocorrer com os fracassos – ou mesmo o medo de fracasso.

“As pessoas sentem que, se elas fracassarem em seu negócio, então elas fracassam enquanto pessoas”, afirma.

Para Christie, isso significa que ler avaliações negativas da sua livraria no site Yelp pode ser uma experiência surpreendentemente dolorosa.

“É realmente difícil ignorar esse tipo de coisa. Qualquer coisa que coloca seu trabalho para baixo intrinsicamente parece que está colocando você para baixo também”, diz ele.

Quando o trabalho está profundamente interconectado com a identidade, também pode ficar difícil para as pessoas colocarem um preço naquilo que elas fazem, algo que Hansen experimentou com seus clientes.

As pessoas podem cobrar menos do que deveriam por seu trabalho ou porque elas têm pouca confiança nelas mesmos ou porque elas sentem que, como seu trabalho é prazeroso, isso é algo que elas estariam dispostas a fazer de graça.

Apesar de querer viver de algo que eles amam, “eles acham que trabalho não foi feito para ser divertido”, diz Hansen.

Para Christie, isso significa pagar a si mesmo como vendedor de livros menos do que ele poderia ganhar porque ele gosta de seu trabalho e tem acesso a pequenas vantagens, como livros de graça, que lhe dão prazer.

O maior desafio que Christie enfrentou, porém, ao trabalhar com aquilo que ele ama é “realmente sentir o tempo todo que eu estou trabalhando.

Conversas sobre coisas que eu amo viram conversas sobre trabalho, ou trabalhos antigos, ou simplesmente se transformam em trabalho, e ponto final”.

Como alguém que se autodenomina um viciado em trabalho, ele tem tido dificuldades em estabelecer limites entre trabalho e paixão – algo comum entre pessoas que monetizam aquilo de que elas gostam.

Um estudo da Deloitte mostrou que pessoas que são apaixonadas por seus empregos estavam dispostas a trabalhar por períodos mais longos e estar mais disponíveis devido à “motivação interior para aprender e melhorar”.

Ao mesmo tempo, Christie não consegue se imaginar fazendo mais nada para viver porque “em muitos casos, eu ainda gosto da atividade tanto quanto gosto do trabalho. A livraria e o que eu escrevo sobre coisas que eu amo são incríveis canais criativos. Eu sou bastante grato a isso.”

Christie está tentando encontrar um melhor equilíbrio entre trabalho e lazer no seu dia a dia. Ele também decidiu manter um hobby apenas para si mesmo.

Dois anos atrás, ele começou a fazer bolos e tortas como uma maneira de relaxar.

Mas, quando um editor recentemente lhe perguntou se ele gostaria de escrever um artigo sobre isso, ele recusou.

“Eu decidi que isso é algo que eu faço apenas para mim mesmo”, diz ele.

“Eu agora percebi que quero manter alguma coisa sagrada.”

  • Joanna York
  • BBC WorkLife

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