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Vindos de longe, estudantes se assustam, mas aprendem a amar Campo Grande

Custo pega muitos de surpresa, mas para quem sai do interior para uma capital, qualidade de vida salta.

A terra de oportunidades que José Antônio Pereira encontrou há 150 anos ainda atrai o olhar de inúmeras pessoas, agora com outro perfil: estudantes universitários. Jovens de todo o Brasil e até do exterior procuram em Campo Grande concretizar o sonho de conquistar a graduação no ensino superior.

Censo do Ensino Superior, divulgado pela última vez em 2021 pelo Ministério da Educação, não tem detalhes sobre a origem dos estudantes universitários. Apenas se sabe que 97.305 moradores estão em uma das diversas universidades.

Das instituições consultadas pelo Jornal Midiamax, apenas a UFMS (Universidade Federal de ) tem dados mais específicos. Dos 11.706 acadêmicos na Cidade Universitária, 2.997 não são do Estado.

Há ainda 100 estudantes estrangeiros, a maioria do Japão. Na pós-graduação, 35 dos 2.622 alunos vieram de outros países.

E é a UFMS que mais atrai esses jovens. A princípio, eles demoram a lidar com o impacto de morar em uma capital, já que boa parte nasceu e cresceu em cidades pequenas.

Para outros, a adaptação chega a ser ainda mais dura, como jovens indígenas. Apesar disso, e até mesmo da pouca receptividade do campo-grandense, todos eles aprendem a amar a Capital e até já a adotaram como novo lar.

Na Capital, Arnaldo trouxe da aldeia a luta por respeito aos indígenas
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Arnaldo é um dos primeiros a cursar Jornalismo de sua aldeia. (Foto: Marcos Erminio, Midiamax)

Arnaldo Fernandes, 21, é da Aldeia Buriti, em Dois Irmãos do Buriti, cidade na região oeste de Mato Grosso do Sul. O estudante de Jornalismo conquistou uma bolsa na UCDB (Universidade Católica Dom Bosco) e nem mesmo a pandemia de covid-19 o fez desistir.

O jovem começou os estudos em 2020, um mês antes de surgir os primeiros casos no Estado. “Tive que recomeçar do zero”, relembra. Ele chegou a morar com uma tia na época

Ao retornar, no ano passado, Arnaldo veio para ficar de vez, com a irmã e um primo. “Era estranho por causa do distanciamento, de ter que usar máscara. Foi muito difícil, chorei nas primeiras semanas”, disse.

Mesmo com o fim das restrições sanitárias, ele ainda sentiu a introspecção do campo-grandense. “É estranho as pessoas aqui não gostarem de abraço”, ressalta.

A UCDB foi a escolha após vários vizinhos na aldeia seguirem para a mesma instituição, mas Arnaldo é um dos primeiros a escolher essa profissão. “Divulgo a minha cultura por meio das pautas. Já tratei da intolerância religiosa contra os Guarani-Kaiowá, que tiveram casas de reza queimadas. É uma luta por todos”, afirma o jovem da etnia Terena.

Na aldeia, a comunidade o enxerga como um guerreiro. “Todo mundo me vê como uma ferramenta de luta, para dar visibilidade à nossa luta”, comentou.

“É triste ver que as pessoas não percebem a importância dos povos indígenas. A luta não é só nossa, protegemos o bem-estar de todos, tanto para nossos filhos e os dos brancos. Ficamos tristes que não veem que somos aqueles que mais protegem a natureza”, complementa.

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Indígena da etnia Terena é visto como ferramenta de luta na Aldeia Buriti. (Foto: Marcos Erminio, Midiamax)

Arnaldo lembra, ainda que tenha poucas recordações, de um caso emblemático para todos os indígenas do Estado. Em 2013, Oziel Gabriel foi morto em confronto com as polícias Federal e Militar, na Fazenda Buriti, em Sidrolândia.

“Tinha 13 anos e lembro que chocou nossa aldeia. Parecia que estávamos numa guerra, escutava tiro e via mulheres e crianças chorando. Foi muito forte”, lembra.

Oziel era da aldeia Córrego do Meio, vizinha à Buriti de Arnaldo. “Querendo ou não, todas as aldeias são ligadas, ele [Oziel] tinha família na Buriti. Ainda hoje é lembrado”, disse. Todo dia 9 de maio, a Córrego de Meio realiza um ato para relembrar Oziel.

As histórias, mesmo as tristes, atraem a curiosidade dos colegas e dos professores. “Meus colegas gostam de ouvir minhas histórias. Até meus professores”, reiterou.

Comparando à rotina da aldeia, Arnaldo elenca o que mais gosta nos dois lugares. “Aqui eu tenho mais privacidade, mas amo rios e aqui não tem. Na aldeia, gosto da tranquilidade. Quando cheguei aqui, tinha dificuldade para dormir com tanto barulho de carro”, afirmou.

Apesar disso, ele já sente como parte da Capital e faz um pedido ao fim da entrevista. “O campo-grandense mal entende a nossa cultura. Precisamos que ouçam os povos indígenas, que acolham mais”, concluiu.

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Bárbara, Thiago e Caio estudam na UFMS. (Foto: Henrique Arakaki, Midiamax)

Campo Grande veio como plano B para sonhada carreira militar de Caio

No Pensionato Casa do Estudante, na Vila Olinda, perto da UFMS, a reportagem encontrou três estudantes. Há quem já tenha decidido ficar em Campo Grande, enquanto os calouros ainda avaliam a cidade.

A universidade não era o projeto de Caio Fumes Batista Leal, 18 anos. Natural de Guararapes, norte do estado de São Paulo, o jovem ainda mantém o objetivo de seguir carreira no Exército Brasileiro.

Como não passou no concurso, ele escolheu a UFMS para cursar licenciatura em História, no início deste ano. “Gosto de História, mas escolhi aqui porque tenho mais campo na área militar”, garante.

Na cidade natal, o estudante ressalta que o efetivo é baixo, ao contrário de Campo Grande. Introvertido, Caio não enfrentou dificuldades ao desembarcar na capital sul-mato-grossense.

“Eu sou introvertido, mas aqui é mais difícil fazer amizade, porque em cidade pequena, quase todo mundo se conhece. Mas dei sorte na universidade de encontrar um cara da mesma cidade que eu, mas nem conhecia”, comenta.

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Caio escolheu História por gostar da disciplina. (Foto: Henrique Arakaki, Midiamax)

Entre as vantagens, Caio cita a malha cicloviária e a variedade para lazer, principalmente de shows de rock, seu gênero musical favorito. “Aqui é melhor, porque lá na minha cidade não tinha nada. Aqui ainda tem bares, lá eu tinha que curtir em outra cidade”, lembra.

O estudante espera a convocação para o serviço militar, e caso consiga seguir carreira, não se opõe a ficar na Capital ou até mesmo ser designado para outro estado. “Se eu passar, tranco a faculdade. Para mim, é melhor ficar aqui, mas se mandarem para o Amazonas, eu vou”, finaliza.

Também recém-chegada, Bárbara ainda prefere comida paulista
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Ter parentes em Campo Grande foi um dos fatores para Bárbara escolher a UFMS. (Foto: Henrique Arakaki, Midiamax)

Também caloura na UFMS, Bárbara Oliveira Corage, 18 anos, deixou Dracena (SP) para estudar Artes Visuais em Campo Grande. “Meus pais nem sabiam que dava para ganhar dinheiro com arte digital”, lembra.

A estudante traça a meta de atuar no mercado de livros infantis, mas já tem conseguido alguns trabalhos esporádicos. Enquanto isso, ela vem se mantendo fora dos rolês.

“Não sou de sair muito. Na minha cidade, era só casa, escola e igreja. Realmente não curto em bar, é só um monte de gente bebendo e conversando, e eu não bebo e não converso muito”, diz, aos risos.

Mas quando frequenta o comércio, Bárbara sente o impacto. “Aqui são menos simpáticos. Numa padaria, parece que não estão felizes em trabalhar. Na minha cidade, o pessoal até ‘papeia’, mas aqui é só pedir, comer e ir embora”, avalia.

Em Campo Grande, a estudante acaba sentindo falta da sensação de segurança que tinha antes. “Aqui é 17h30 e está escurecendo, tem rua escura e fico insegura. Lá na minha cidade, escurece 19h30 e dá para andar na rua até 21h porque é tranquilo. Eu evito sair pelo campus passando pelo [Estádio] Morenão, prefiro ir junto com o pessoal por dentro do campus”, afirmou.

Outro fator é a alimentação. “Eu como muito aqui e não estou satisfeita. Na minha cidade, dois pedaços de pizza me deixavam estufada. Aqui como quatro e preciso de mais. Vejo que a comida vem em pequenas quantidades e é cara e lá vem mais e é barata. Aqui parece cidade para rico e como não sou, complica”, brinca.

Por outro lado, Bárbara já consegue ver duas coisas que só Campo Grande lhe proporciona. “Quando estou em Dracena, sinto falta da privacidade. Aqui eu sou produtiva e lá me sinto meio inútil, tem meus pais. E aqui eu preciso me virar”, pondera.

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Jovem vê maiores oportunidades na carreira na Região Sul, mas não descarta ficar em Campo Grande. (Foto: Henrique Arakaki, Midiamax)

“Gosto muito dos doces daqui, principalmente cookies, lá não acho isso”, complementa. A jovem até se vê ficando de vez na capital sul-mato-grossense, mas caso consiga se manter profissionalmente.

“Como capital, aqui me permite expandir o networking. Em Dracena, não tem muita gente interessada em arte digital. Como quero trabalhar com livros infantis, vejo mais mercado no Sul [do Brasil], porque aqui não tem tanto isso. Curitiba tem muito mais mercado. Se fosse ficar aqui, teria que lutar um pouco”, avaliou.

Thiago escolheu Mato Grosso do Sul para fazer carreira no Direito

Vindos muitas vezes de cidades do interior, esses estudantes procuram moradia próximo às universidades para evitar se perder numa capital com quase 1 milhão de habitantes. Thiago Ramos de Oliveira, de 21 anos, está no quarto ano de Direito na UFMS.

O estudante é de São Gabriel da Cachoeira, cidade no extremo norte do Amazonas, na fronteira com a  e a Venezuela. Logo ao chegar em Campo Grande, em 2019, sentiu o impacto na diferença comportamental.

“O pessoal aqui é mais reservado, não tem muita energia social para gastar. Na universidade, quem vem de fora é mais comunicativo. Tanto que todos os meus amigos são os que vieram de fora”, comenta.

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Thiago escolheu Mato Grosso do Sul para seguir carreira no Direito. (Foto: Henrique Arakaki, Midiamax)

No campus, Thiago relembra que passou o primeiro ano quase sozinho. “As amizades variam de curso a curso. Em Medicina, como o pessoal vem mais de fora, é mais unido. Mas na maioria, há quem se feche em ‘panelinha’ e fica até o fim, no seu grupinho do ensino médio. Levei um ano [para me ambientar], passava o dia todo na universidade com um amigo, que é do Pará”, relembra.

O clima também foi outro “problema” para o jovem ao chegar em Campo Grande. “O calor é igual. No inverno, lá é chuva todo dia. Não faz frio grotesco que faz aqui. E não troco 97% de umidade lá por isso”, afirma, mencionando o clima seco da capital sul-mato-grossense.

Após um ano de adaptação, o estudante enfrentou um segundo ano de curso difícil, como todo acadêmico no País. A pandemia de covid-19 forçou a adoção do sistema remoto de aulas e Thiago acabou ficando em Campo Grande já que ainda tinha o estágio.

“Foi difícil, fiquei um mês sozinho até ir para outro pensionato. Eu gosto de gente e chegava aqui e não tinha ninguém. Eu ficava mais duas horas no estágio, ia no café da esquina conversar para não ter que chegar cedo, porque eu só estudava e dormia”, disse.

Com o fim das restrições no segundo semestre de 2021 e o retorno das aulas presenciais no início deste ano, o jovem se viu indo a eventos com amigos onde jamais se imaginou.

Em São Gabriel da Cachoeira, a diversão local são festas familiares, que começam tarde, diferentemente de Campo Grande.

“Lá, meia-noite está começando. O pessoal aqui é mais reservado, não tem eventos assim tão tarde. Mas aqui tem bem mais lazer, tem shoppings, cinema, agora o Aquário do Pantanal e principalmente os parques, que eu vou só para lembrar como é respirar”, conta, aos risos.

No primeiro ano, a diversão se resumia ao cinema. “Ia bastante ao cinema. Tinha um colega que estudava Cinema com quem sempre fazia maratonas de clássicos, como ‘Cidadão Kane’ e ‘Casablanca’. Ou ia nos eventos da universidade”, relembra.

Fora do campus, o lazer começou limitado. “Seja em Manaus ou São Gabriel [da Cachoeira], são pessoas da mesma cultura com os mesmos gostos. Lá o funk predomina, e sertanejo não tem essa força como aqui. No começo, eu não gostava, até apanhei um pouco. Só em festas universitárias tem eletrônica e funk”, complementa.

Para se integrar mais, Thiago começou a ir a eventos com música sertaneja, por insistência de amigos. “Aprendi a gostar no ano passado. Mas agora me afastei um pouco para me dedicar ao estágio”, ressalta.

Apesar da variedade de entretenimento, ele sente falta de uma coisa. “Sinto falta de rios. Aqui, eu preciso ir para Bonito ou achar alguém que tenha piscina”, lamenta.

E o que fez o jovem escolher Campo Grande? “Foi escolha minha vir para cá. No Sisu [Sistema de Seleção Unificada], tinha como opções estudar no Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia. No Rio, não fui simplesmente porque meu pai não deixou, por uma questão de segurança”, diz Thiago, em referência à fama da capital fluminense de violenta.

“Os outros estados não me interessaram. Aqui eu vi que a sistemática do Judiciário é mais interessante, todos são mais pagos e quistos. Vi mais perspectiva de trabalho aqui”, garante.

Mesmo caso se tornasse juiz no interior de Mato Grosso do Sul, Thiago avalia ser melhor trabalhar aqui. “No Amazonas, são alguns dias de viagem até a capital. Aqui a cidade mais distante são algumas horas de carro. E lá, a Justiça nos abandona, dizemos que vige a lei do [calibre] 38, muitos juízes desistem”, conta.

Com essa perspectiva de permanecer no Estado, o estudante ainda não se vê como campo-grandense.

“Não me vejo integrado, mas aqui estou. Gosto daqui, é pacífico. Mas o pessoal adotou uma alma de velho, os vizinhos são mais fechados, mas até são amigos. Campo Grande é uma capital interiorana”, conclui Thiago.

Em duas décadas, Alaídes chegou a ir a casamento de estudantes
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Alaídes chegou a morar com estudantes quando começou a trabalhar com pensionatos. (Foto: Henrique Arakaki, Midiamax)

Alaídes Remonti tem 57 anos, 23 deles trabalhando com jovens em pensionatos. De um, hoje ela administra cinco moradias estudantis. E tudo começou ao acaso.

“Eu vendia purificador de água de porta em porta. Tinha uma vizinha com uma amiga dona de pensionato, que estava cansada e queria vender. Essa minha vizinha falou para eu comprar e entrei, foi uma mudança radical”, relembra.

Alaídes passou a administrar o pensionato, primeiramente no bairro Taveirópolis. Em 2000, transferiu-se para a Vila Olinda, onde hoje se mantém. “Fiquei até morando aqui, depois trazer todo mundo de lá. No outro ano, como não tinha internet, eu anunciava no jornal. E teve fila aqui na porta, comecei a colocar mais pessoas nos quartos”, disse.

A proprietária teve que alugar uma kitnet para abrir espaço para mais estudantes, mas ainda assim chegou a abrigar uma delas. Ela até tentou dividir por gênero por algum tempo, mas com maior público masculino, as moradias se tornaram mistas.

Hoje, ela comanda duas unidades mistas e três masculinas, totalizando 38 hóspedes. E os desafios se multiplicaram. “Quando é dia de compra, eu abaixo os bancos do carro, encho de sacola e saio entregando em cada um”, conta. Mas as compras são feitas por etapas. “Tem dia de verdura e de frios, porque não cabe tudo no carro”, afirmou, aos risos.

“Já fui até em casamento! A gente mantém contato, continuamos amigos e vem me visitar quando vem em Campo Grande. Mas hoje em dia é mais complicado, a geração mudou. Não são tão comunicativos”, avalia.

Ela recorda do período que os inquilinos eram quase parte da família. “A gente tomava tereré junto, jogava baralho, ia no mercado com dois ou três. Íamos ao cinema, mesmo eu não querendo acaba indo junto. Hoje não é mais assim, parece que a internet influenciou”, conta.

Alaídes mantém uma rotina de passar todos os dias nas casas, e quando não tem tempo, liga para a funcionária que mora no pensionato para saber dos jovens, para assim manter os pais informados. “Sábado, domingo e feriado, sempre passando para ver, mas é gostoso”, garante.

Essa mudança de gerações impactou muito também na rotina. “Antigamente, eu oferecia uma ceia de Natal no fim do ano. Como veio diminuindo [a participação], acabei parando de fazer. Hoje em dia, onde tem café da manhã e almoço, tem quem levante e nem dá bom-dia. Mas a gente chega e conversa, pergunta como está e tenta agradar a todos”, diz Alaídes.

O Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) também mudou a forma de ocupação das casas. Se antes as vagas eram preenchidas logo no começo do ano, hoje passam-se meses até as últimas chamadas.

“A geração vai mudando, mas tentamos agradar. Alguns são mais carentes, ligam. Até levo nos lugares até se adaptarem. Mas a maioria tem mais contato com as funcionárias”, disse Alaídes.

E assim, pouco a pouco, esses jovens cheios de sonhos aprendem a gostar de Campo Grande. Mesmo quem vai embora, sempre tem alguma coisa que vai guardar para sempre.

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Ministério da Educação conta mais de 97 mil estudantes na Capital, mas não especifica quantos vieram de fora. (Foto: Nathália Alcantara, Midiamax).https://midiamax.uol.com.br/

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