Conversas de WhatsApp lidas por terceiros, mensagens apagadas, e-mails marcados como lidos, invasão de redes sociais, a presença de um usuário desconhecido e frequente nos stories do Instagram, ter alguns recursos “magicamente” ligados no smartphone, como o GPS. Você já se perguntou se você ou seu celular já foram vítimas de… “stalking“?
É verdade que o Brasil tem um problema insistente no que tange a privacidade. Afinal, são comuns os cenários nos quais casais compartilham as senhas dos smartphones e consultam, sem a permissão dos parceiros, as atividades feitas em seus smartphones. Até mesmo entre amigos essa situação acontece com frequência. É o que chamamos de “era do stalking”: saber informações sobre outra pessoa nunca foi tão fácil com os recursos disponíveis na internet.
Acontece que esse cenário naturalizado de perseguição obsessiva é tão grave no País que já se tornou crime. A cada passar de ano, crescem os números relacionados a essa perseguição digital e, segundo estudo “Stalking online em relacionamentos”, da Kaspersky, aplicativos espiões no celular são a forma mais comum de observação. Para se ter ideia, um em cada quatro brasileiros já foi ou está sofrendo um monitoramento abusivo por meio da tecnologia.
E o cenário fica ainda mais complexo quando se sabe que 70% dos brasileiros sequer sabem o que é stalkerware.
Espera, você também não sabe o que é stalkerware?
Deixa que eu te explico: imagine ter em seu smartphone um aplicativo ou software capaz de mostrar a outra pessoa cada ação que você desempenha no seu dia, dentro e fora do celular. E isso vai desde olhar as mensagens e atividades nas redes sociais até mesmo a mostrar, em tempo real, a localização de onde você se encontra.
Dadas as devidas proporções, é isso o que o stalkerware proporciona; o termo compreende uma série de softwares e aplicativos desenvolvidos para rastrear e monitorar as ações de uma pessoa por meios digitais — aliados, evidentemente, aos físicos. E não é preciso ser um hacker superinteligente para ter acesso a eles: há aplicativos de monitoramento disponíveis, de forma inclusive gratuita, nas lojas de aplicativo da maior parte dos sistemas operacionais (iOS e Android).
“É importante destacar que o programa stalkerware é instalado, na maioria das vezes, tendo acesso físico ao equipamento, por esse motivo o abuso é sempre feito por alguém próximo à vítima: conjugue, familiar ou, em alguns casos, colegas de trabalho”, explica Fabio Assolini, analista sênior de segurança da Kaspersky no Brasil.
Esse termo é mais um dos relacionados ao “stalking”, que comporta os tipos de perseguição por meio físico ou digital. Foi dele que saiu a expressão “stalker”, que se refere a pessoas que monitoram e perseguem as outras sem permissão ou consentimento por meio das redes sociais ou por aplicativos próprios.
Mas “stalkear” é crime, se as informações são “públicas” nas redes sociais?
Em 2021, dada a gravidade do assunto, o Senado aprovou a Lei 14,132/21, que prevê o crime de perseguição. No artigo 147A, está descrito: “Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”. Ou seja, o problema na verdade não é ter acesso a uma informação “pública”, disposta em uma rede social, mas usá-la para perseguir aquela pessoa.
A Lei, vale destacar, foi dedicada à luta de gênero no Brasil devido ao aumento da violência doméstica contra as mulheres durante o isolamento social. No entanto, garante direitos a ambos os gêneros.
O principal motivo para englobá-la nas leis voltadas as mulheres, no entanto, está relacionado ao autor do crime: normalmente quem faz uso deles são as pessoas envolvidas em relacionamentos românticos. “É importante dizer que esse tipo de programa para monitorar conjugues permanece escondido da vítima. Neste contexto, faz sentido que o(a) abusador(a) conheça sua existência, já a vítima não irá saber do que se trata. Juntando essas características, faz sentido o combate ao stalkerware focar também na proteção das mulheres”, pondera Raquel Marques, presidente da Associação Artemis e doutora em Saúde Coletiva pela Universidade de São Paulo (USP).
De acordo com o estudo da Kaspersky, a principal forma de perseguição online é via smartphone, posto que 54% dos entrevistados que já foram vítimas de stalking afirmaram que o abuso começou pelo celular. Mas há também há outros caminhos: 36% disseram que a perseguição veio de dispositivos específicos, 24% listaram programas instalados em computadores, 14% destacaram a espionagem por meio da webcam e 12%, por incrível que pareça, também ressaltaram monitoramento por dispositivos de casa inteligente.
Outro dado que salta aos olhos é que 13% das vítimas sequer sabem como a perseguição aconteceu. “A instalação desses softwares ocorre de maneira discreta e sem o conhecimento da vítima. E faz sentido o celular estar na primeira posição, já que ele permite o rastreamento da localização junto com o acesso a informações privadas, como chamadas telefônicas, conversas via aplicativos e o e-mail”, complementa o analista de segurança da Kaspersky.
O estudo mostra, ainda, que embora as pessoas tenham conhecimento da existência de programas que monitoram as atividades na internet, localização e gravação por meio de câmera e microfones do próprio smartphone, pouquíssima gente (34%) sabe que esses mesmos programas avisam o abusador quando a vítima tenta desinstalá-los ou chega em casa.
É evidente que existe uma variação imensa de programas com diferentes funcionalidades, conforme explica Assolini. “Os stalkerware disponíveis para baixar na Internet tem recursos limitados, esses programas foram adequados para uma instalação simples como um jogo ou um programa para editar um texto. Já os softwares com mais recursos são criados e comercializados por empresas e exigem a instalação via acesso físico do dispositivo, com o desbloqueio do celular para obter total controle e acesso das funções”, acrescenta.
Uma cultura de compartilhamento de senhas que favorece o stalking
Claro que nem toda perseguição começa com o compartilhamento de uma senha com amigos, conjugues e familiares, mas uma parte considerável das espionagens vem daí, de fato. E, condicionado pelo próprio relacionamento, o abusador tende a ter um acesso facilitado aos smartphones e computadores da vítima, uma vez que ceder a senha é considerado, por muitos, um ato romântico.
Nesses casos, o “voto de confiança” pode sair caro: “Casais costumam informam a senha do smartphone uns aos outros e a pesquisa confirma isso, 62% dos respondentes sabem a senha do parceiro e também informaram a sua”, aponta Assolini.
Ele também aponta para o compartilhamento de senhas com amigos e familiares. “Outro hábito digital preocupante do ponto de vista da segurança é o compartilhamento de serviços como iCloud e Google Account entre membros da mesma família. 36% dos brasileiros fazem isso e essa é mais uma opção tecnológica para perseguir alguém, já que esses serviços têm recursos de localização geográfica, armazenamento de fotos na nuvem entre outros recursos que podem ser explorados”, conclui.
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