Eles se prepararam durante meses ou até anos para realizar o sonho de vir estudar na França. Muitos deles conseguiram até mesmo o visto de estudante e estavam prestes a embarcar, mas as diretrizes adotadas no início deste ano pelo governo francês impedem que viajantes brasileiros e de várias outras nacionalidades entrem no país, mesmo para estudos. Desde abril, esse não é considerado um motivo imperioso, mas um movimento que teve início no Brasil tenta sensibilizar as autoridades francesas.
A oceanógrafa Raisa de Siqueira Alves Chielle estava de malas prontas para vir à França. Doutoranda em Ciências Marinha Tropicais no Instituto de Ciências do Mar da Universidade Federal do Ceará, ela obteve no ano passado uma bolsa de estudos de um ano do programa de internacionalização da Capes para realizar um doutorado sanduíche no Museu Nacional de História Natural de Paris.
Raisa deveria chegar na França no último mês de março, mas com o agravamento da situação sanitária no país, pediu um adiamento do início de suas atividades para maio. A doutoranda chegou a fazer o pedido do visto em Brasília e recebê-lo em abril. No entanto, dez dias antes de embarcar, o governo francês alterou as regras e passou a desconsiderar viagens de estudo como um motivo imperioso. “Desde então, sigo esperando que a entrada de estudantes e pesquisadores seja liberada para que eu possa realizar minha pesquisa”, disse, em entrevista à RFI.
Até o momento, o laboratório e os pesquisadores que irão receber Raisa em Paris foram compreensíveis e estão aguardando a sua chegada, bem como a Capes, que permite o adiamento temporário do início da pesquisa da doutoranda no exterior. No entanto, ela explica que também precisa cumprir prazos e teme que, em um determinado momento, não seja mais possível adiar seu projeto.
“Entendo perfeitamente o lado do governo francês de se resguardar em um momento tão crítico que estamos vivendo. Porém, a educação e a ciência são os pilares de uma sociedade desenvolvida. Inclusive, a pandemia nos mostrou a importância da educação e da ciência nas nossas vidas. Por isso, penso que o estudo e a pesquisa devem ser considerados motivos de entrada, tanto na França, como em todo o mundo”, afirma.
Estudar é imperioso
Para reivindicar a vinda à França, estudantes brasileiros selecionados por universidades e instituições francesas, mas bloqueados pelas restrições sanitárias criaram o movimento “Étudier Est Impérieux” (Estudar é Imperioso). Dois dos líderes do grupo, o carioca Luan Dias e a mineira Taiza Marques Sampaio, calculam que até 600 estudantes brasileiros estejam enfrentando essa situação.
Nas redes sociais, eles vêm pedindo que as medidas sejam revisadas rapidamente, antes que percam as datas das matrículas e até mesmo as bolsas de estudo. Muitas universidades francesas exigem que todas a burocracia relativa ao início do ano letivo (a partir de agosto, no Hemisfério Norte) seja feita em pessoa e se recusam a adiá-las.
O objetivo do movimento, segundo Taiza, é pressionar as autoridades para obter alguma previsão sobre quando os estudantes poderão viajar. Formada em engenharia civil, a própria jovem explica que precisa estar no final de agosto na França para a matrícula presencial na Universidade de Toulouse 3, onde foi selecionada para um mestrado. À RFI, ela contou que começou os preparativos para vir estudar na França há quase um ano, sendo aprovada no último mês de março.
“Eu estava tranquila porque, no ano passado, mesmo com a pandemia, os estudantes brasileiros puderam ir à França. Mas, em abril deste ano, ficamos sabendo que não poderíamos mais obter o visto para viajar. O problema é que, desde então, não temos mais previsão de quando essa situação vai se regularizar. A resposta que o Consulado nos dá é de esperar. Eu entrei em contato com a minha universidade, expliquei a questão da situação sanitária no Brasil, disse que a emissão de vistos está suspensa, e perguntei se em caso de atraso da minha chegada, há possibilidade que guardem minha vaga. A resposta é categoricamente não”, lamenta.
Situação injusta e frustrante
A mesma situação é enfrentada pelo carioca Luan Dias, selecionado pela prestigiosa École Internationale de Création Audiovisuelle et de Réalisation (Eicar) para estudar cinema. Depois de ter passado toda a etapa de seleção e entrevistas na instituição e na Campus France, ele conta que ficou sabendo, por acaso, da suspensão de emissão de vistos para estudantes em abril, ao receber uma resposta automática do Consulado da França no Brasil.
“A gente fica muito triste com tudo isso porque são processos de seleção muito longos, concorridos e cansativos e a gente vem se preparando para isso há muito tempo. Muita gente, como eu, já adiou os planos no ano passado por causa da pandemia. Investir nesses projetos durante meses, e passar por tudo isso para chegar no momento do visto para sermos recusados é muito frustrante”, desabafa o estudante.
Luan também critica a desigualdade no tratamento dos estudantes brasileiros. Ele aponta que os indianos estavam enfrentando a mesma situação, mas, há poucos dias, a embaixada da França na Índia anunciou que voltará a emitir vistos para estudos. “A Índia faz parte da zona vermelha dos países em que a situação é crítica por causa da pandemia, a variante Delta continua se propagando, e a gente acha que essa situação é muito injusta. Estão nos impedindo de termos acesso a vagas que conquistamos e não estamos nos negando a cumprir as medidas sanitárias”, defende Luan.
De fato, a França classifica a segurança sanitária dos países de fora da União Europeia em três zonas: verde, laranja e vermelha. O Brasil faz parte desta última categoria e apenas viajantes com motivos considerados imperiosos podem entrar em território francês, sendo que estudos e pesquisa não fazem parte destas exceções.
Para os que cumprem os requisitos, é necessário apresentar uma prova de vacinação completa com os imunizantes autorizados pela Agência Europeia de Medicamentos (Pfizer, Moderna, AstraZeneca ou Johnson & Johnson), um documento atestando a disposição de realizar um teste de detecção da Covid-19 na chegada à França, além de uma justificativa do local onde uma quarentena de dez dias deve ser obrigatoriamente ser cumprida.
“A gente acredita nas restrições sanitárias, mas existem outras formas de prevenir a disseminação do vírus que não seja impedindo a nossa chegada. Estamos dispostos até a obedecer a medidas mais rígidas do que as atualmente em vigor que nos permitam entrar”, explica o estudante carioca.
Mobilização dos estudantes traz resultados
A atuação do movimento “Étudier Est Impérieux” (Estudar é Imperioso), vem conseguindo sensibilizar as autoridades nos últimos dias. Após uma carta enviada pelos estudantes ao governo francês, a senadora republicana Joëlle Garriaud-Maylam tuitou recentemente em apoio ao grupo e afirmou à RFI que está em contato com o Ministério das Relações Exteriores da França para que a situação dos estudantes estrangeiros seja revisada.
“Questão muito pertinente! O que estamos esperando para deixar os estudantes do Brasil e outros países entrarem na França para realizar seus estudos? Sob a condição de estarem vacinados, claro… Estudar deve ser considerado como um motivo imperioso”, escreveu a senadora Joëlle Garriaud-Maylam em seu perfil no Twitter.
A pesquisadora francesa Juliette Dumont, integrante da Associação Pela Pesquisa Sobre o Brasil na Europa (Arbre, sigla em francês), classificou o caso como “vergonhoso”. Acadêmicos da entidade estão elaborando uma iniciativa para apoiar os estudantes brasileiros e de outros países da América Latina que vêm enfrentando o mesmo problema.
No fim de semana, o setor de Cooperação Educacional da embaixada do Brasil na França também expressou seu apoio à causa. Em resposta à ação dos estudantes, indicou que o Ministério das Relações Exteriores do Brasil intercedeu junto às autoridades francesas, lembrando os impactos da decisão sobre a cooperação bilateral em matéria de educação e “tendo em conta que a França é um dos principais parceiros do Brasil nesse setor”.
O Itamaraty seguirá realizando contatos com as autoridades francesas competentes para que considerem a adoção de medidas alternativas que permitam a retomada da emissão de vistos a estudantes e acadêmicos brasileiros e sua entrada no território francês”, afirma a carta enviada ao movimento.
Contatada pela RFI, a embaixada da França no Brasil afirmou que cabe ao Ministério das Relações Exteriores da França responder à polêmica. Após pedidos de entrevista, a pasta afirmou que está a par da situação dos estudantes e que a lista dos países por zona de segurança sanitária vem sendo revisada regularmente.
“No momento, os estudantes que residem em países classificados como ‘zona vermelha’ não foram incluídos nas categorias de viajantes considerados como tendo um motivo imperioso para vir à França. Em consequência, a emissão de vistos continua temporariamente suspensa”, respondeu uma porta-voz Ministério das Relações Exteriores da França.
Segundo a pasta, os estudantes poderão entrar no país “logo que a situação sanitária permitir”. A chancelaria ressalta que “os dossiês continuam sendo examinados” e que a questão poderá evoluir de acordo com a melhora da situação sanitária nos países da ‘zona vermelha’, como é o caso do Brasil.
Por Daniella Franco, da redação da RFI Brasil